Não é de hoje que o debate a respeito da inserção da iniciativa privada em instituições públicas gera polêmicas. Em diversos momentos da história brasileira, principalmente após a redemocratização e, conseqüentemente, o avanço do modelo neoliberal, privatizações e terceirizações têm se mostrado alvo de disputas políticas e ideológicas. São exemplos marcantes, a venda do controle das telecomunicações a empresas européias, uma das maiores privatizações já realizadas no Brasil, e a abertura da Vale (antiga Vale do Rio Doce) ao capital privado. Apesar de dividir opiniões, a prática é crescente e vem adquirindo força, principalmente em países em desenvolvimento, como Brasil, Chile e Índia.
Se as divergências já são acentuadas quando o assunto é a abertura do patrimônio público ao capital privado, elas só tendem a se intensificar. Um empreendimento que promete dar força à discussão é a introdução da iniciativa privada na administração do sistema público prisional. E vieses importantes dão vazão à disputa, já que nela estão envolvidas questões como a do monopólio coercitivo do Estado, do lucro sobre a mão-de-obra de detentos e da capacidade estrutural brasileira para suportar tal modelo.
Para começar, trata-se de um mercado altamente lucrativo, tanto por sua incipiência no país, quanto pelo grande complexo que engloba. Em vista disso, vem se tornado alvo de disputa de diversas empresas, ainda mais com a expectativa de constituição de PPPs (Parceria Público-Privada). A Correction Corporation of America, maior empresa desse ramo nos Estados Unidos, por exemplo, viu seu valor de mercado saltar de US$ 200 milhões para US$ 1 bilhão em um espaço de cinco anos.
Contexto Brasileiro
No Brasil, o processo não está tão avançado, mas, ao que tudo indica, é apenas uma questão de tempo para que ganhe força. Empresas de diversas áreas começam a disputar o mercado que será aberto com a exploração de presídios na forma de PPP. Os Estados de Pernambuco e Minas Gerais, por exemplo, lançaram consultas públicas em janeiro para o processo e pretendem fazer a licitação ainda neste ano. São Paulo também tem interesse em realizar PPPs em penitenciárias, porém o governo ainda discute pendências jurídicas sobre o sistema.
Segundo levantamento do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), havia, em julho de 2007, quase 420 mil presos no país para 263 mil vagas existentes. Se todos os mandatos de prisão expedidos pela Justiça fossem cumpridos, estima-se que o número de detentos aumentaria em 550 mil. Seriam necessários R$ 7 bilhões anuais para atendê-los. Hoje, o país gasta R$ 4,8 bilhões com seus presos ao ano.
Apenas no Estado de Pernambuco serão necessários R$ 248 milhões para construção e aparelhamento do Centro Integrado de Ressocialização de Itaquatinga, em que serão abrigados 3.126 detentos. Desde que a consulta pública foi lançada, em 11 de janeiro do ano passado, pelo menos oito empresas e quatro bancos buscaram informações sobre a parceria, prevista para vigorar por 33 anos.
Em Minas Gerais, o Estado pretende repassar até R$ 78 milhões ao ano para a empresa vencedora da PPP, sendo que há um prêmio de 1,5% da soma dos pagamentos mensais, para estimular resultados e a qualidade da gestão. A parceria deverá vigorar por 27 anos.
No projeto, cada preso custará ao Estado até R$ 2.100 por mês, incluídos aí gastos operacionais e de construção da unidade. O governo estima que, se assumisse a construção e operação, gastaria R$ 2.400 por preso ao mês. Hoje, apenas o gasto operacional do governo com presidiários é de R$ 1.700.
Polêmicas Éticas e Legais
Para Laurindo Dias Minhoto, professor de sociologia do direito da Fundação Getulio Vargas e especialista na área, a maior crítica feita ao envolvimento da iniciativa privada nos sistemas penais diz respeito ao lucro com o encarceramento. "É um debate de caráter ético", diz. "Não seria aceitável lucrar com o sofrimento infligido a outras pessoas.”
Segundo ele, os funcionários públicos também fazem pressão sobre presídios controlados por empresas no Brasil, tentando reduzir a eliminação de vagas públicas. "Na verdade, apenas o Estado poderia usar força letal para controlar pessoas", afirma Minhoto. "O agente privado jamais teria tal prerrogativa." Esse foi um dos motivos que impediu que o sistema de privatização nos presídios evoluísse em muitos países. Nos Estados Unidos, o modelo está estagnado em 7% da população carcerária há anos.
Ainda de acordo com o especialista, outro motivo são as ações sindicais para impedir a expansão do sistema. Trabalhadores de várias áreas alegam que empresas usam presos como mão-de-obra semi-escrava e geram concorrência desleal na criação de vagas fora das grades.
O Presidente da Ordem dos Advogados do Brasil de São Paulo (OAB SP), Luiz Flavio Borges D´Urso, por sua vez, explica que existem duas formas históricas de privatização de presídios.
A mais utilizada, até o momento, é a Americana, na qual a privatização é total. Isso significa que o preso é absolutamente entregue à empresa prestadora de serviço, que passa a reger sua vida em cárcere. Assim, o tempo que ficará preso, as formas de punição, sua soltura, concessão de condicionais, são todos determinados por ela. Nestes casos, o Estado abre mão de seu poder jurisdicional.
Outro modelo que tem ganhado destaque é o francês, da Co-Gestão. Neste sistema, o Estado permanece com a condição jurisdicional e somente a função material (alimentação, infra-estrutura, saúde etc.) é delegada à iniciativa privada.
“Segundo as premissas constitucionais brasileira, só é possível no país a implementação da forma francesa, em que o Estado fica com a guarda do preso e a empresa só administra a parte material”, aponta D´Urso. Desta maneira, não há necessidade de novas medidas legais para validar o sistema.
Para o presidente da OAB de São Paulo, no modelo Francês o risco de “escravização” do trabalho dos detentos é bem pequeno. Embora a empresa administradora coordene tais atividades remuneradas, “seu tipo, forma e finalidade ficam sob a responsabilidade do Estado, que também decide para onde reverter a renda gerada. Portanto, a empresa só organiza este trabalho, seguindo as orientações estatais.”
O Estado e a Indústria
Sob o ponto de vista da indústria, o sistema público não é mais capaz de acompanhar a evolução da violência no país e os presídios, da forma em que se encontram, não passam de “escolas de marginais”, segundo afirmação de Ricardo Lerner, assessor e consultor de Segurança da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp). Para ele, a necessidade de modernizar o sistema prisional é imediata, já que seus problemas não dizem respeito somente ao Estado, mas a toda a sociedade. O modelo vigente só trará mais desgastes às condições já precárias deste sistema e isso gera uma situação de risco à população. “Implantar este sistema [PPP] é uma questão de segurança social”, completa.
Ao defender as PPPs, Lerner afirma que, além de representarem a alternativa para a falta de recursos públicos na área, o modelo torna-se uma fonte importante de empregos e geração de renda para a região onde o presídio será instalado.
De acordo com o coronel da Reserva da Polícia Militar de São Paulo e ex-Secretário Nacional de Segurança Pública, José Vicente da Silva Filho, a iniciativa é bem vinda ao Estado, uma vez que as prisões, como estão, não passam de “formas caras de piorar as pessoas”. Contudo, traça diferenças, segundo ele fundamentais, entre as formas de abertura do terreno público.
Ressalta que experiências como a do Paraná e Pará, onde o sistema carcerário foi totalmente privado, não são as mais adequadas às necessidades do país. Nestes casos, o Estado compra o terreno, constrói o prédio e a empresa vencedora da licitação fica responsável por sua administração. Empreendimento de alto custo aos cofres públicos. Se a forma de PPP for implantada, tanto o terreno quanto a construção do prédio ficam a cargo do capital privado, que o equipa e administra.
Além disso, com o acordo, é obrigação das empresas oferecerem serviços básicos como alimentação, higiene, atendimento médico, odontológico e jurídico, fato que tende a reduzir os índices de insatisfação entre os presos e eventuais rebeliões. Em caso de estragos físicos dentro do cárcere, cabe à prestadora de serviços públicos repor os materiais danificados, sem qualquer custo ao Estado. Um choque no bolso das empresas, que elas tentarão evitar a qualquer custo.
“Embora o custo de cada preso fique por volta de 20% mais caro, não haverá mais problemas de superlotação e os detentos serão mais bem-cuidados: há médicos, advogados, uniformes, alimentação e o que prevê a lei.", conclui o coronel.